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22.9.08

Lisa

a pensão na cidade grande era miserável. o nome pomposo: pensão palácio. eu cursava o segundo ano da faculdade de direito. meu pai era capataz numa fazenda e suas economias me foram entregues para que eu pudesse completar os estudos. desde criança eu o ouvia dizer: quero que o menino olhe o mundo por um buraco diferente daquele que eu olhei. eu nunca entendia se o mundo é que seria diferente ou se o buraco seria outro ou se o mundo seria novo olhando por um diferente buraco. a frase era complexa e ambígua demais para mim, tão criancinha. bem. a pensão tinha poucos hóspedes e todos me pareciam tristes. ou era só impressão? um deles me fascinava. baixo, magro, os olhos claros sob óculos de aro fininho, o cabelo carapinhado e loiro. fascinava por quê? alguma coisa infantil desesperada imanava do homem. ele era dono de uma pequena e dócil macaca: lisa. parecia gostar muito do animalzinho. uma vez ouvi-o contar à dona da pensão que um bando de moleques capturou a macaca e queria matá-la para comer. ele deu um bom dinheiro para os meninos e salvou a bichinha. durante o dia lisa ficava no modesto quintal astrás da casa, na goiabeira. à tarde ficava inquieta e lá pelas cinco horas ia postar-se junto à porta de seu dono. todo mundo sabia que eram cinco horas e que o homem não deveria tardar. ele chegava, ela subia-lhe pelas pernas, alcançava os ombros, dava gritinhos, coçava-lhe a carapinha loira. uma noite ouvi gemidos no corredor dos quartos e fiquei curioso. entre o meu quarto e o do homem havia um cômodo vazio onde a dona da pensão guardava coisa velhas, tampos de mármore rachado, um grande relógio muito estreito e alto, geringonças. a mulher abriu o quarto uma única vez à minha chegada "para que você não pense que há algum namorado meu escondido aí", ela dizia às gargalhadas. a porta do quarto vivia trancada, ninguém se interessava pelos badulaques empilhados ali. no dia seguinte aos estranhos gemidos, comprei uma chave de fenda e alguns dias mais tarde, ouvindo-os novamente, concluí que vinham do quarto do homem e com muita cautela abri a porta do quarto de guardados, excitado na bestagem dos meus dezenove anos. uma luz azulada entrava pelas frestas da outra porta co9ntígua ao quarto do homem. então vi: o homemnu, deitado, e lisa acariciando-lhe o sexo com as mãozinhas escuras, delicadas. entre pequenos gemidos e fracos soluços o homem dizia: "minha amada, minha adorada lisa, temos apenas um ao outro, somos apenas nós dois neste sórdido mundo de agonia e de treva". lisa olhava alternadamente para o rosto e para o sexo do homem. quando enfim ele ejaculou, ela enrodilhou-se lenta aos pés da cama. ele apagou a luz. ouvi-o dizer ainda: "obrigado, amiga". fiquei muito tempo encostado àtras daquela porta. nunca o mundo me pareceu tão triste, tão aterrador, tão sem deus. no dia seguinte escrevi ao meu pai dizendo-lhe que não tinha mais paciencia para os estudos, queria voltar para a roça. estranhou muito. nunca me perguntou coisa alguma, nem eu saberia esplicar-lhe o patético, o dilacerado de tudo aquilo que eu havia visto, nem eu saberia dizer para mim mesmo o porquê de abandonar os estudos. o pai morreu muitos meses depois. ouvi-o dizer à mãe antes do para sempre morto: "presta atenção no rapaz, não é mais o mesmo".
ele estava certo. nunca mais fui o mesmo.


retirado do livro contos d'escarnio textos grotescos, hilda hilst.

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